terça-feira, janeiro 12, 2010



A Samaritana

Marcelo de Oliveira Orsini



Esclarecendo o Evangelho
João, 4:4-15



4 – Jesus precisava atravessar a Samaria.

5 – Chegou, pois, a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto das terras que Jacó dera a seu filho José.

6 – Era ali a fonte de Jacó. Cansado da viagem, estava Jesus assim sentado ao pé da fonte; era cerca da hora sexta.

7 – Uma mulher da Samaria veio tirar água. Disse-lhe Jesus: "dá-me de beber".

8 – Pois seus discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos.

9 – Disse-lhe então a mulher samaritana: "Como, sendo tu judeu, pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana?" (porque os judeus não se comunicam com os samaritanos).

10 – Respondeu-lhe Jesus: "Se souberas o Dom de Deus e quem é aquele que te diz "dá-me de beber", tu lhe terias pedido, e ele te daria a água viva".

11 – Disse-lhe a mulher: "Senhor, não tens com que a tirar, e o poço é fundo; donde, pois, tens essa água viva?

12 – És tu, porventura, maior que nosso pai Jacó, que nos deu este poço, do qual bebeu ele, seus filhos e seu gado?"

13 – Replicou-lhe Jesus: "Todo o que bebe desta água, tornará a ter sede.

14 – Mas quem beber da água que eu lhe der, não terá mais sede no futuro; mas a água que eu lhe der, se tornará nele uma fonte de água que mana para a vida imanente."

15 – Disse-lhe a mulher: "Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem venha aqui tirá-la".


O poço de Jacó ficava a menos de cinco minutos ao sul da cidadezinha Sicar, ainda habitada na época de Jesus. Quando Jesus chegou ao pé da fonte subterrânea, estava cansado da íngreme ladeira que galgara, e sentou-se sobre a borda do poço ou ao lado dele. João não deixa de anotar (sempre os números) a hora: era a hora "sexta", ou seja, cerca do meio-dia. Bom lugar para um repouso, a essa hora escaldante. Enquanto o Mestre repousava, seu discípulos vão pouco além, à cidade, para buscar alimentos. Nesse ínterim, aproxima-se uma mulher da região da Samaria, uma "samaritana". Comum era o hábito de buscar água em ânforas, nos poços. O poço de Jacob mede 39 metros de profundidade, e só quem possua uma corda bastante longa poderá haurir água. Ora, os viajantes não costumam carregar tais apetrechos, pois ninguém recusa um pouco d’água a um peregrino sedento. Jesus solicita esse obséquio da samaritana. Acontece que, entre samaritanos e judeus havia animosidade de longa data, recrudescida após o cativeiro, quando os companheiros de Zorobabel recusaram que os samaritanos colaborassem na restauração do templo (Esdras, 4:15). Tudo justifica, pois, a surpresa da samaritana, ao ouvir que Jesus falava com ela. Que era um galileu, manifestava-o seu sotaque e as borlas de seu manto. Embora sem recusar a água, faz-lhe sentir sua estranheza. Jesus, que nela viu um espírito de escol, capaz de penetrar os "mistérios do Reino", aproveita a circunstância para esclarecê-la.


Começa o Rabbi dizendo "se souberas o dom de Deus, tu Lhe pedirias de beber, e Ele te daria água viva". Evidente tratar-se de um simbolismo, notável, sobretudo, numa região pobre de água. A samaritana, porém, não percebe o simbolismo (tal como ocorrera com Nicodemos) e interpreta ao pé da letra, embora lhe tenha dado, agora, o título de Senhor, reconhecendo-Lhe a superioridade incontestável.


A palavra samaria significa vigilância, em hebraico. Penetrando na interpretacão espiritual da cena descrita por João, verificamos que quando a alma está "vigilante", ela vai ao "poço" (ao coração), porque está sedenta de amor divino. E aí ela encontra "sentado" ao pé do poço, (habitando no coração) aguardando-a, o Cristo Interno, o Eu profundo, também sedento. E a individualidade (Jesus), esse Eu profundo, pede-lhe de beber, pede à Alma Vigilante que Lhe entregue seu amor, para que Sua sede seja saciada.


Primeiramente há um equívoco natural: a Alma Vigilante estranha o chamamento de alguém que ela ainda não encontrara, um Desconhecido. Ela acostumara-se a percorrer as áreas do amor profano nos leitos conjugais; do amor desinteressado, nos filhos que gerara; do amor sublimado nas devoções ritualísticas; do amor divino nos claustros segregados do bulício do mundo. E agora eis que faceta nova à sua frente se apresenta. Um Estranho! ...


Mas esse Estranho é belo e é suave como a tarde a descambar. É puro como a aurora que silenciosamente arranca os véus da noite, desnudando os céus para o esponsalício com o sol. E esse Estranho diz-lhe que lhe poderá dar "água viva"... Realmente, todas as águas que anteriormente com sofreguidão bebera para saciar seu amor, jamais a deixaram satisfeita: queria sempre mais; e depois de ter mais, vinha o tédio. E o Estranho promete que se ela O "conhecer" profundamente, Ele saciará sua sede para sempre!


Ingênua, retruca-lhe que o "poço é fundo": realmente o coração do homem é abismo insondável, é infinito, e só com o infinito pode ser saciado definitivamente.


Será o Desconhecido maior que o "vencedor" (significado de Jacó) que deu à humanidade liturgias, ritos e pompas religiosas? O Cristo Interno demonstra que todos os que bebem da água das exterioridades transitórias da personalidade continuam tendo sede; apenas aqueles que se unem a Ele, que O "conhecem", imergindo ou mergulhando na Consciência Cósmica, só esses é que jamais terão sede, porque nessa mesma Alma Vigilante surgirá uma fonte perene de água viva, que virá do fundo do "poço" de seu coração e manará sem intermitências para a Vida Imanente, para a vida interna, para a vida do Espírito.


Nesse diálogo sublime e inenarrável, a Alma Vigilante sente os pormenores de beleza inefável (só quem no experimenta pode avaliá-lo!) pede ansiosamente, qual "mendigo do espírito", que lhe seja dada essa água, para que ela jamais sinta a solidão, jamais volte a ficar sedenta de amor.


Marcelo de Oliveira Orsini