Parto de mim
Ana Jácomo
O dia era grande. Daqueles sem
agenda. Sem pés apressados. Sem olhos vigiando ponteiros. Acordei com a
sensação de que o tempo era outra coisa. E a vida também. Com uma saudade que
tinha feições familiares. Cheiro conhecido. Braços longos. Que eu tentava sufocar
das mais variadas formas e continuava lá, pulsando, doída e doce, desde sempre.
Misto de veneno e mel, derramando por dentro, alastrando quente, tocando em
tudo, permeando a minha história e me seguindo, incansável, aonde quer que eu
fosse. A qual eu chamava por diferentes nomes, em diferentes épocas, como se
houvesse esquecido do que se tratava.
*
Quando, por algum descuido meu, a
voz daquela saudade conseguia driblar os disfarces do meu ouvido, sussurrando
ou gritando ela pedia que eu me entregasse. Que jogasse as armas no chão. Que
puxasse o fio do tecido de que eram feitas as máscaras. Que parasse com os
truques. Que derrubasse o muro que ergui. Que desistisse de continuar
catalogando novas ilusões. Em pânico, eu lhe dizia que não. Como um peixe que
nega o mar. Como um pássaro que rejeita as asas. E a cada vez que dizia, a cada
vez que a negava, a vida se escondia um pouco mais.
*
Naquela manhã, quando acordei,
sua fala mansa me pegou desprevenida. Eu tinha todo o medo do mundo, mas
sentia, com alívio, que já não tinha mais a mesma resistência para esquivar-me
dela. As armas que eu manejara, habilmente, por tanto tempo, tornavam-se cada
vez mais obsoletas. O tecido das máscaras estava esgarçado; algumas já haviam
até caído, desfeitas, pelo caminho. A maioria dos truques tornaram-se tão
conhecidos que não conseguiam mais me enganar, ainda que eu tentasse. O muro,
repleto de rachaduras em vários pontos, tombava, lentamente, em pequenos
pedaços, a cada passo que dava. As ilusões se dissipavam, uma a uma, deixando
cada vez mais à mostra os seus olhos pousados nos meus.
*
A saudade era do ser que me
habitava. Que eu era, antes de estar qualquer coisa. Por trás das armas. Das
máscaras. Dos truques. Do muro. Das ilusões. Acima. Apesar deles. Que encontrava,
raramente, entre gestos tímidos e tensos, quando furava o meu esquema de
segurança, vinha ao meu encontro e se misturava comigo de tal forma que, por
alguns instantes, éramos um. Que luzia, ainda que eu ofuscasse. Que me ligava a
todas as coisas, ainda que eu me afastasse de todas elas. Que jogava sementes,
ainda que eu arrancasse os brotos. Que era terra molhada, quando eu era
deserto.
*
A saudade era do ser que morava
em mim. Que tinha um sol inteiro para me dar, quando a vela, de chama trêmula,
que eu levava, estava se acabando. Que cultivava sorrisos atrás dos meus
pântanos. Que não tinha idade. Que abraçava grande. Que pronunciava, sem baixar
a voz, palavras como ternura, encanto, fascínio, pureza. Que atraía almas
conterrâneas. Com uma musicalidade semelhante. Uma fragrância familiar. Com
cheiro de bolo de vó. De sonho sem medo. De vida beijada.
*
A saudade era do ser, em mim, que
entendia de crisálidas. De sede. Pés. Miragens. Da dor das noites que esquecem
de dormir. Das emoções que hesitam despertar. E, conhecendo as dores,
chamando-as pelos nomes, não se agarrava a elas. Que se via em tudo. Em todos.
Que confiava nas pessoas. Que sabia que as pessoas são, em essência, amor,
disfarçadas de espelhos, que refletem umas para as outras aquilo que impede que
se mostrem e se vejam como são.
*
A saudade era do ser que me fazia
acreditar que eu não era uma turista num planeta estrangeiro nem uma
sobrevivente de uma civilização extinta, como tantas vezes sentia. E me
ensinava que toda vez que eu achasse que os outros precisavam de legendas para
me entender, eu poderia recorrer aos idiomas que o coração entende. Um sorriso.
Um olhar. Um abraço.
*
A saudade era do amor que aquele
ser emanava e do qual eu era feita. Da seiva que permeava todo o jardim. Que
era o meu corpo, por trás da roupa de gente que eu usava e da qual precisava
cuidar com o carinho com que se cuida da roupa do amado, embora raramente eu
lembrasse disso. Da porção em mim que era mágica e sábia. Humilde e serena. Que
me intuía. Que me ajudava a desenhar o meu caminho. Encontrar o meu acorde.
Escrever a minha história.
*
A saudade, terna e arrebatadora,
era daquilo em mim que tinha um compromisso com a vida, ainda que eu fizesse de
conta que o havia esquecido e só honrasse os compromissos que o meu coração
nunca assumiu. Daquilo que não se importava com os porquês. Que se desprevenia.
Que se enamorava. E que se olhasse para o azul do céu mil vezes se emocionava
em todas elas, reverenciando o pintor. Que me lembrava de que eu devia saborear
a paisagem com os companheiros de viagem, mesmo sem saber aonde o barco me
levaria. E de que se chegasse a tormenta, eu não deveria esquecer, na aflição,
que eu não era o barco, e, sim, o mar.
*
Embora tivesse saudade desse ser
amoroso que, em essência, eu era, tinha muito medo de me entregar a ele. E
sabia, sem conseguir desviar os meus olhos dos olhos daquela saudade, que
aquele era o mesmo medo que estava por trás de outras entregas que ficaram no
rascunho. O mesmo que tinha feito com que vivesse à margem de mim. E tivesse
acompanhado a marcha da multidão. Usado o mesmo uniforme. Empunhado as mesmas
armas. Fabricado o mesmo tédio. Compactuado com o suicídio diário e lento das
vidas que desaprendem a florescer. E chamado a tudo isso de normal.
*
Naquele dia acordei com saudade e
com medo. Nem mais casulo nem vôo ainda. Sabia que enquanto eu não voltasse a
dar a mão àquele ser que me habitava, enquanto eu não voltasse a dançar com
ele, continuaria a me sentir longe de casa, separada da minha gente, fora do
meu habitat, perambulando, confusa e assustada, no mundo árido e sem cor que
desenhei quando larguei a sua mão.
*
Para fluir comigo, a vida pedia
que eu soltasse o medo e me entregasse. Que dissesse sim. Que acreditasse nela.
Eu não sabia como fazer, mas sentia, entre as contrações, que ela estava
fazendo por mim, através de cada experiência que eu atraía para o meu caminho.
*
Naquele dia, grande, acordei com
a sensação de que o tempo era outra coisa. De que a vida era outra coisa. E eu
também.
JÁCOMO,Ana. Do livro "Parto de Mim".Fábrica de
Livros do Senai, 2001.
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