Capítulo I
A Inteligência das Células e dos Alunos
Problemas no Paraíso
Em meu segundo dia no Caribe conheci meus alunos, cem
ansiosos estudantes de medicina, e percebi que nem todas as pessoas viam aquela
ilha como eu, um refúgio pacífico e tranquilo no meio do oceano.
Para aqueles
estudantes, Monserrat era a última chance de transformar o sonho de se tornarem
médicos em realidade.
Eram quase todos norte-americanos, da costa leste, com idade
e etnia variadas.
Um deles, aposentado e com 67 anos de idade, estava ansioso
para aprender coisas novas.
A formação deles também era bem heterogénea: a
maioria tinha cursado apenas o colegial, mas também havia professores,
contadores, músicos, uma enfermeira e até um contrabandista.
Apesar de todas as diferenças, tinham duas características
em comum.
A primeira é que haviam sido eliminados pelo competitivo processo
seletivo das escolas de medicina dos Estados Unidos.
A segunda era que tinham
intenção real de se tornarem médicos e não desperdiçariam aquela chance de
obter seu diploma.
A maioria tinha economizado durante anos para pagar aquele
curso e as des-pesas de morar em um país estrangeiro.
Muitos estavam se
aventurando sozinhos fora de casa pela primeira vez, longe da família e dos
amigos, e também boa parte vivia em condições precárias naquele campus.
Mas,
apesar de todos os obstáculos e contratempos, nada os fazia mudar de ideia.
Estavam decididos a se tornarem médicos. Pelo menos era o que parecia quando
iniciaram o curso.
Antes de mim tinham tido três professores de
histologia/biologia celular.
O primeiro abandonou os alunos porque teve de
resolver problemas pessoais e simplesmente foi embora três semanas depois de se
iniciarem as aulas.
A diretoria encontrou outro para substituí-lo, mas este
também não pode continuar porque ficou doente.
Para que os alunos não ficassem
sem aulas, um professor de outra matéria lia com eles trechos dos livros em
sala de aula.
Claro, isso não era produtivo e só os entediava, mas pelo menos
fazia com que cumprissem a carga horária de palestras, um pré-requisito das
bancas examinadoras para a prática da medicina nos Estados Unidos.
Então, pela
quarta vez no mesmo semestre, os alunos tinham um novo professor.
No primeiro
dia, falei rapidamente sobre minha formação acadêmica e minhas expectativas
para o curso.
Deixei bem claro que, mesmo estando em um país estrangeiro, meu
nível de exigência para com eles seria o mesmo que tinha para com meus alunos
em Wisconsin.
Teriam de passar pela mesma bancada acadêmica, não importava onde
estivessem estudando.
Tirei então uma pilha de exames de minha pasta e distribuí
entre eles, explicando que se tratava de um teste de conhecimentos gerais.
Já
estávamos no meio do semestre e por isso deveriam ter base suficiente para
fazê-lo.
Eram 20 questões de um teste de histologia do primeiro trimestre da
Universidade de Wisconsin.
Durante os primeiros dez minutos de prova a sala
ficou em silêncio mortal.
Depois, alguns alunos começaram a suar e a bufar, e o
desespero se espalhou pela sala mais rápido do que o vírus ebola.
Ao final dos 20 minutos de
prazo que eu havia estipulado, todos estavam em pânico.
Quando disse
"tempo esgotado" houve uma chuva de gemidos e reclamações.
A
pontuação mais alta foi de dez respostas corretas.
A maioria não acertou mais
de sete.
E o resto acertou duas ou três por mera sorte.
Todos me olhavam
chocados.
Perceberam claramente o que os esperava.
Metade do semestre havia se
passado, mas teriam de recomeçar tudo outra vez, desde o início.
Como a maioria
ali já tinha sido reprovada em outros cursos, conhecia bem o protocolo.
Seus
olhares pareciam os daqueles filhotes de foca prestes a serem abatidos que
vemos nas fotos do Greenpeace.
Meu coração disparou.
Imaginei que provavelmente
a maresia e o ar daquela ilha estivessem me tornando um pouco mais generoso.
Sem pensar duas vezes, disse a eles que faria tudo o que estivesse ao meu
alcance para que estivessem preparados para os exames finais, desde que também
se esforçassem para isso.
Percebendo minha sinceridade, eles pareceram se
acalmar um pouco.
Sentia-me como um treinador preparando o time para a disputa final.
Expliquei a eles que não eram menos inteligentes que os alunos que tive nos
Estados Unidos.
A única diferença era que ainda não estavam, como eles,
acostumados a estudar muitas horas por dia e a memorizar grandes quantidades de
material em pouco tempo, uma característica essencial para alunos de faculdade.
Expliquei também que histologia e biologia celular não são cursos de teoria
muito complexa.
A natureza segue princípios muito simples, fáceis de
assimilar.
Prometi que, em vez de pedir que memorizassem tudo, explicaria passo
a passo o funcionamento das células para que entendessem os princípios básicos
e complementaria a prática de laboratório com palestras sobre teoria no período
da noite.
Pareceram mais animados após essa explicação e saíram da sala
determinados a não deixar que mais aquele obstáculo os impedisse de atingir
seus objetivos.
Quando todos saíram e parei para pensar no tamanho da
responsabilidade que havia assumido, meu ânimo diminuiu.
A maioria daqueles
alunos não tinha conhecimento prévio suficiente para um curso de medicina,
mesmo os mais capacitados.
Percebi que a experiência acadêmica naquela ilha
poderia acabar sendo uma grande perda de tempo e desperdício de esforços tanto
para mim quanto para eles. ^
Comecei a achar que lecionar em Wisconsin era bem
mais fácil.
Eu dava apenas oito das cinquenta aulas do curso de
histologia/biologia celular.
O corpo acadêmico era bem maior e havia vários
professores para cada matéria.
Claro, tinha de conhecer o conteúdo de todas
elas, pois também era responsável pelo acompanhamento das aulas de laboratório
e respondia às questões dos alunos.
Mas conhecer a matéria e ter de apresentar
todo o conteúdo não é a mesma coisa!
Tinha a sexta-feira e o final de semana
para pensar na situação.
Se isso tivesse acontecido na época em que eu estava
em Wisconsin, provavelmente teria recusado o convite para lecionar a matéria.
Mas quando me sentei naquela tarde perto da piscina, para assistir ao
maravilhoso pôr-do-sol do Caribe, minha angústia se transformou em alegria.
Fiquei contente
porque, afinal, pela primeira vez em toda a minha carreira de professor, seria
responsável por todas as matérias do curso de biologia, sem ter de me adaptar
ao estilo ou às restrições de um corpo acadêmico.
As Células são Seres Humanos em Miniatura
Ao contrário das expectativas, aquele curso de histologia
acabou sendo o mais estimulante e intelectualmente profundo de minha carreira
acadêmica.
Como tinha liberdade para desenvolver o conteúdo da maneira que
desejasse, resolvi colocar em prática uma técnica que tinha em mente havia
anos.
Sempre achei que comparar as células a "seres humanos em
miniatura" poderia facilitar muito a compreensão dos alunos sobre sua
fisiologia e comportamento.
Montei então um esboço do curso com base nessa ideia
e o resultado pareceu bem interessante.
Muito provavelmente despertaria em meus
alunos o mesmo entusiasmo que eu tinha em relação à ciência quando criança.
Apesar de não gostar do aspecto burocrático da vida acadêmica, com todas
aquelas reuniões e festas chatas, toda vez que entrava em um laboratório para
fazer pesquisas me sentia exatamente como aos sete anos de idade, feliz e
entusiasmado.
A ideia de comparar células a seres humanos se desenvolvia cada
vez mais em minha mente, pois após tantos anos observando-as por meio do
microscópio, sentia-me como um grão de areia diante de uma forma de vida tão
complexa e imponente, embora anatomicamente simples, exatamente como uma placa
de Petri (Recipiente circular raso, de
vidro ou plástico, usado para fazer cultura de microorganismos).
Você provavelmente aprendeu na escola alguns conceitos básicos sobre
os componentes de uma célula: o núcleo, que contém material genético, a
mitocôndria, que produz energia, a membrana que a reveste e o citoplasma, que
fica entre eles.
Mas dentro de cada uma dessas partes aparentemente tão simples
há um vasto universo.
A estrutura das células envolve tecnologia tão avançada
que os cientistas ainda não conseguem compreendê-la totalmente.
Minha técnica
de compará-las a seres humanos certamente pareceria heresia para a maioria dos
biólogos.
Tentar explicar a natureza de um ser não humano utilizando como
referência o comportamento humano é chamado antropormofismo.
Os
"verdadeiros" cientistas consideram o antropormofismo um verdadeiro pecado
mortal e criticam os cientistas que o utilizam.
Mas naquele momento eu tinha um
bom motivo para quebrar as regras.
Os biólogos estudam e compreendem os
processos da natureza por meio da observação e do desenvolvimento de hipóteses
sobre seu funcionamento e, para se certificar de que estão no caminho certo,
realizam experiências.
Portanto, criar hipóteses e experiências requer
mecanismos de "raciocínio" sobre como as células ou outros organismos
vivem.
O que os cientistas ainda não perceberam é que, a partir do momento que
aplicam soluções e pontos de vista "humanos" para desvendar os mistérios
da vida estão praticando antropormofismo.
Não importa quanto se discuta o assunto, a ciência e a biologia possuem
características humanas.
Pessoalmente, acredito que a crítica ao
antropormofismo ainda seja remanescente da Idade Média, quando os líderes
religiosos negavam qualquer relação entre os seres humanos e as outras espécies
criadas por Deus.
Entendo que é um exagero comparar objetos como lâmpadas,
rádios ou ferramentas a seres humanos, mas não vejo problema quando se trata de
organismos vivos.
Somos todos organismos multicelulares e, portanto, temos
muito em comum em termos de comportamento, se comparados às nossas células.
Também entendo que é necessário um tipo diferente de percepção quando se trata
de estabelecer paralelos desse tipo.
Historicamente, nossas crenças
judaico-cristãs nos levaram a acreditar que nós somos seres inteligentes e
criados por meio de um processo diferente e totalmente distinto daqueles
utilizados para plantas e animais.
Isso nos faz sentir superiores em relação a
todas as formas de vida menos inteligentes, especialmente os organismos que se
encontram em posições menos elevadas da cadeia evolutiva. Mas esse conceito
está totalmente fora da realidade.
Quando observamos outros seres humanos como
entidades individuais ou consideramos nós mesmos organismos únicos ao vermos
nossa imagem refletida em um espelho, estamos corretos de certa forma, ao menos
em nível de observação.
Mas quando nos reduzimos ao tamanho de uma célula para
analisar nosso próprio corpo sob a perspectiva celular passamos a ver o mundo
sob uma nova perspectiva.
Não nos vemos mais como uma entidade única e sim como
uma comunidade de mais de 50 trilhões de células.
Enquanto preparava minhas
aulas para aquele novo curso, uma enciclopédia que eu usava quando criança me
vinha à mente com frequência.
A parte de ciências tinha uma ilustração de sete
páginas transparentes e sobrepostas mostrando o corpo humano em detalhes.
A
primeira mostrava a figura de um homem nu.
A segunda mostrava o mesmo corpo,
porém sem a pele, com os de-talhes da musculatura.
A cada página viam-se
detalhes diferentes, como o esqueleto, o cérebro, a estrutura nervosa, as veias
e os órgãos internos.
Adaptei a ideia ao meu curso no Caribe e imaginei as
mesmas transparências mostrando a estrutura celular.
A maior parte dos
componentes da estrutura de uma célula é chamada de organela, seus "órgãos
em miniatura" que ficam dentro de uma substância gelatinosa chamada
citoplasma.
As organelas equivalem aos tecidos e órgãos do corpo humano.
Possuem
um núcleo, que é sua maior organela, uma mitocôndria e o complexo golgiense,
além de vacúolos.
Os cursos tradicionais apresentam primeiro essa estrutura
celular; depois passam aos tecidos e órgãos do corpo humano, mas fiz algo
diferente: integrei as duas partes do curso mostrando as semelhanças entre os
corpos humano e celular.
Ensinei a meus alunos que os mecanismos bioquímicos
utilizados pelos sistemas de organela celular são basicamente os mesmos
utilizados por nosso corpo.
Embora sejamos compostos de trilhões de células,
enfatizei que não há sequer uma "nova" função em nossos corpos que
não esteja presente também nos das células.
Cada célula
eucariótica, isto é, que contém um núcleo, possui uma estrutura funcional
equivalente aos nossos sistemas nervoso, digestivo, respiratório, excretor,
endocrinológico, muscular, esquelético, circulatório, tegumentar (pele),
reprodutivo e até mesmo algo parecido com nosso sistema imunológico porém mais
primitivo, que utiliza uma família de proteínas semelhantes a anticorpos do
tipo "ubiquitina".
Expliquei também que cada célula é um ser
inteligente e que sobrevive por conta própria, algo que os cientistas já
demonstraram retirando células individuais do corpo para mantê-las em cultura
separada.
Assim como eu havia descoberto intuitivamente durante minha
infância, essas células inteligentes tem vontade própria e um propósito de
vida.
Procuram ambientes que sejam adequados à sua sobrevivência e evitam todos
os que possam ser tóxicos e/ou hostis.
Da mesma maneira que nós, humanos,
fazemos, analisam as centenas de estímulos que recebem do microambiente que
habitam para selecionar as respostas comportamentais mais adequadas e garantir
sua sobrevivência.
As células também são capazes de aprender com as
experiências que vivenciam em seu ambiente e de criar uma espécie de memória
que é passada aos seus descendentes.
Por exemplo: quando o vírus do sarampo
infecta uma criança, suas células ainda não amadurecidas são colocadas em ação
para criar um anticorpo de proteína protetor e combatê-lo.
Nesse processo, as
células criam um novo gene que servirá de padrão para a fabricação de
anticorpos contra o sarampo.
O primeiro passo para gerar um gene de anticorpos
ocorre no núcleo das células imunológicas imaturas.
Em seus próprios genes há um
grande número de segmentos de DNA que contêm códigos de fragmentos moldados de
proteínas.
Recombinando e montando aleatoriamente esses segmentos, as células
imunes criam uma vasta gama de genes que formam uma proteína única de
anticorpos.
Então, quando uma célula imune imatura produz uma proteína de
anticorpos que seja um complemento físico "semelhante" ao do vírus do
sarampo, aquela célula é ativada.
Células ativadas utilizam um mecanismo muito
interessante chamado "maturação de afinidade", que lhes permite
"ajustar" de maneira muito precisa o formato de sua proteína de
anticorpos, para que ela seja um complemento perfeito para vírus como o do
sarampo (LI et al., 2003; ADAMS et al., 2003).
Por meio de um processo chamado
"hipermutação somática", as células imunes ativadas fabricam centenas
de cópias de seu gene de anticorpo.
Mas cada nova versão do gene é levemente
modificada e contém um formato diferente da proteína de anticorpo.
A célula
seleciona a variante de genes que melhor se adapta àquela necessidade de
anticorpos.
Essa versão selecionada do gene também passa por vários ciclos de
hipermutação somática para que a forma do anticorpo seja esculpida a ponto de
se tornar o complemento físico "perfeito" do vírus (WU et al., 2003;
BLANDEN e STEELE , 1998; DIZA e CASALI , 2002; GEARHART , 2002).
Quando o
anticorpo esculpido se une ao vírus, desabilita-o e o marca para ser destruído,
protegendo a criança do sarampo.
As células criam então um
"arquivo" das informações genéticas desse anticorpo para que todas as
vezes que o organismo for invadido pelo vírus do sarampo elas possam responder
imediatamente.
O novo gene de anticorpos também pode ser passado a todas as
novas gerações em seu processo de divisão. Assim, elas não apenas
"aprendem" sobre o vírus do sarampo como criam um "arquivo"
a ser herdado e propagado entre a sua prole.
Este magnífico processo de
engenharia genética é de extrema importância, pois representa um mecanismo de
"inteligência" inata que permite às células se desenvolver (STEELE et
al., 1998).
As Origens da Vida : Células Inteligentes se tornam cada vez mais Inteligentes
Não deveria ser uma surpresa para nós o fato de as células
serem tão inteligentes.
Os organismos unicelulares foram a primeira forma de
vida deste planeta.
Somente 600 milhões de anos mais tarde, de acordo com
análises, é que os fósseis surgiram na Terra.
Ou seja, durante 2,75 bilhões de
anos da história da Terra os únicos habitantes vivos foram os organismos
unicelulares como bactérias, algas e protozoários semelhantes a amebas.
Então,
há 750 milhões de anos, esses organismos descobriram como evoluir e se tornar
ainda mais inteligentes: surgiram os primeiros organismos multicelulares
(plantas e animais).
No início eram apenas comunidades esparsas ou
"colônias" de organismos unicelulares, constituídas de centenas de
células.
Mas as vantagens evolucionárias de viver em comunidade fizeram com
que, em pouco tempo, as colônias se transformassem em organizações de milhões,
bilhões ou mesmo trilhões de células individuais interagindo entre si.
Embora
cada célula tenha dimensões microscópicas, o tamanho dessas comunidades pode
variar de algo minúsculo, mas visível, a uma estrutura monolítica.
Os biólogos
classificam essas comunidades de acordo com sua estrutura observada pelo olho
humano.
Embora pareçam ser entidades únicas (como um rato, um cão ou um ser
humano) são, na verdade, associações organizadas de milhões e trilhões de
células.
A exigência evolucionária de que fossem criadas mais comunidades
celulares é meramente um reflexo da imperiosa necessidade biológica de
sobrevivência.
Quanto mais consciência um organismo tem do ambiente que o
cerca, melhores são suas chances de sobreviver.
Quando as células se agrupam,
aumentam exponencialmente sua consciência do meio ambiente.
Assim, se para
cada uma delas dermos um valor X, toda colônia de organismos terá uma
consciência potencial de pelo menos X vezes o número de células que a compõem.
Para sobreviver em densidade tão alta, as células tiveram de criar ambientes
estruturais próprios.
Essas sofisticadas comunidades subdividem sua carga de
trabalho com mais precisão e eficácia que nossas maiores empresas e corporações
mundiais.
O método mais eficiente ainda é ter indivíduos especializados para cada
tarefa.
No desenvolvimento dos animais e das plantas, as células adquirem as
funções específicas ainda na fase embrionária.
O processo de especialização
citológica permite que se desenvolvam determinados tecidos e órgãos do corpo.
Com o passar do tempo, esse padrão de "diferenciação", como o da distribuição
da carga de trabalho entre os membros da comunidade, por exemplo, passa a fazer
parte dos genes de cada célula da comunidade, aumentando a eficácia do
organismo e sua habilidade de sobreviver.
Em organismos maiores, apenas uma
pequena porcentagem das células é responsável pela leitura e resposta aos
estímulos do ambiente.
Esse papel é desenvolvido por grupos de células
especializadas que formam os tecidos e órgãos do sistema nervoso.
A função do
sistema nervoso é captar as informações do ambiente e coordenar o comportamento
de todas as outras células em sua vasta comunidade.
A divisão de trabalho entre
as células oferece ainda outra vantagem quando se trata de sobrevivência: reduz
sua longevidade.
Um indivíduo consome menos que dois.
Se compararmos, por
exemplo, o custo da construção de apartamentos de dois dormitórios ao de
apartamentos de apenas um dormitório haverá uma grande diferença,
especialmente quando se trata de condomínios grandes, de 100 unidades.
Para
sobreviver, as células consomem certa quantidade de energia.
Portanto, quanto
menos for gasto, maiores serão as chances de sobrevivência do grupo e melhor
será sua qualidade de vida.
Henry Ford analisou as vantagens técnicas do
esforço conjunto e as utilizou para criar o conceito de linha de montagem para
a fabricação de carros.
Antes de Ford, uma equipe de funcionários levava de uma
a duas semanas para produzir um único automóvel.
Ele organizou sua fábrica de
modo que cada funcionário fosse responsável por uma tarefa específica.
Posicionou
todos em fila na esteira de produção e foi passando as peças de um especialista
para o outro.
O conceito de especialização de tarefas se mostrou tão eficaz que
a indústria de Ford conseguia produzir um automóvel em apenas 90 minutos.
Mas,
infelizmente, "nos esquecemos" desse conceito de cooperação, tão
necessário para a evolução, quando Charles Darwin propôs uma teoria
radicalmente diferente sobre o surgimento da vida.
Há 150 anos ele chegou à
conclusão de que os organismos vivem em uma perpétua "luta pela
sobrevivência".
Para Darwin, luta e violência são partes naturais da
natureza animal (humana) e também a "força básica" do desenvolvimento
evolucionário.
No capítulo final de A origem das espécies por meio da seleção
natural ou a preservação das raças favorecidas na luta pela vida, Darwin
descreve aquilo que chama de "inevitável luta pela sobrevivência" e
enfatiza que a evolução se dá pela "guerra da natureza, da escassez à
morte".
Portanto, a partir dessa teoria, a evolução se dá de maneira
aleatória e temos um mundo cheio de pequenas batalhas sangrentas e sem sentido
em nome da sobrevivência ou, segundo a descrição poética de Tennyson, "nas
mandíbulas da morte".
A Evolução Sem As mandíbulas da Morte
Embora Darwin tenha sido o mais famoso dos evolucionistas, o
primeiro cientista a estabelecer a evolução como um fato foi o grande biólogo
francês Jean-Baptiste de Lamarck (Lamarck, 1809, 1914, 1963).
Até mesmo Ernst
Mayr, o arquiteto do neodarwinismo (uma versão moderna da teoria de Darwin, que
incorpora a genética molecular do século 20), concorda que Lamarck foi de fato
pioneiro na área. Em seu clássico de 1970, Evolution and the diversity of life
(Mayr, 1976, p. 227) [A evolução e a diversidade da vida], ele declara:
"A
mim parece que Lamarck tem um bom motivo para ser denominado 'fundador da
teoria da evolução', e assim é chamado por diversos historiadores franceses...
ele foi, de fato, o primeiro autor a dedicar um livro inteiro à apresentação de
uma teoria de evolução orgânica.
E foi o primeiro a apresentar todo o sistema
de animais como produto da evolução".
Lamarck não apenas apresentou sua
teoria 50 anos antes de Darwin, como ofereceu uma explicação menos drástica
para os mecanismos da evolução.
Sua teoria diz que a evolução está baseada em
uma interação cooperativa entre os organismos e seu meio ambiente, que lhes
permite sobreviver e evoluir em um mundo dinâmico.
Afirmava que os organismos
passam por adaptações necessárias à sua sobrevivência em um ambiente que se
modifica constantemente.
O mais interessante é que a hipótese de Lamarck sobre
os mecanismos da evolução se ajusta muito bem à explicação dos biólogos
modernos sobre como o sistema imunológico se adapta ao meio ambiente da mesma
maneira que descrevi acima. A teoria de Lamarck foi duramente criticada pela
Igreja.
O conceito de que os seres humanos evoluíram a partir de formas de vida
mais primitivas foi considerado heresia. Lamarck também não recebeu o apoio de
seus colegas cientistas. Como eram todos cria-cionistas, ridicularizaram suas
ideias.
Um biólogo de desenvolvimento alemão, August Weismann, foi ainda mais
longe quando fez testes para provar que, ao contrário do que Lamarck dizia, os
organismos não transmitem traços ou aprendizado sobre sobrevivência adquiridos
em sua interação com o ambiente.
Em uma de suas experiências, cortou a cauda de
um casal de ratos e os colocou juntos para que procriassem.
Dizia que, se a
teoria de Lamarck estivesse correta, os pais transmitiriam à prole a ausência
de cauda.
Mas os filhotes nasceram com cauda normal.
Weismann repetiu então a
experiência com 21 gerações, mas nenhum filhote nasceu sem cauda, o que o levou
a concluir que a teoria de Lamarck estava errada.
A experiência de Weismann,
porém, não testava realmente a teoria de Lamarck.
Sua hipótese era que as
mudanças evolucionárias levam "imensos períodos de tempo", nas
palavras do biógrafo L. J. Jordanova.
Em 1984, Jordanova escreveu um artigo
mostrando que a teoria de Lamarck "era fundamentada" em uma série de
"proposições", incluindo: "... as leis que governam organismos
vivos produziram formas muito complexas em imensos períodos de tempo" (JORDANOVA, 1984, p. 71).
A experiência de
Weismann, que durou cinco anos, obviamente não era suficiente para testar a
teoria.
Outra falha na experiência é que Lamarck jamais afirmou que todas as
mudanças em um organismo seriam transmitidas a seus descendentes.
Segundo sua
teoria, os organismos adquiriam traços (como mudanças em formato ou tamanho da
cauda) quando se tratava de mudanças necessárias à sua sobrevivência.
Embora
Weismann pensasse que os ratos não precisavam de sua cauda ninguém perguntou a
eles qual era sua função para a sobrevivência da espécie!
Apesar de todas as
falhas, o estudo dos ratos sem cauda ajudou a destruir a reputação de Lamarck,
que acabou sendo ignorado.
O evolucionista C. H. Waddington, da Universidade de
Cornell, escreveu em The evolution ofan evolutionist (WADDINGTON, 1975, p. 38)
[A evolução de um evolucionista]:
"Lamarck foi o único na história da
biologia a ter o nome ridicularizado e a sofrer abusos por suas teorias.
A
maioria dos cientistas que propõem novas teorias acaba se tornando
ultrapassada, mas poucos autores tiveram seu trabalho tão criticado e rejeitado
mesmo dois séculos depois, a ponto de os céticos acreditarem que ele tinha a
mente perturbada.
É preciso admitir que Lamarck foi julgado injustamente".
Waddington escreveu estas palavras 30 anos atrás.
Hoje, a teoria de Lamarck
está sendo reavaliada sob a perspectiva da nova ciência, que não considera
totalmente erradas as suas ideias nem totalmente corretas as de Darwin.
A
manchete de um artigo do famoso periódico Science em 2000 já indicava grandes
mudanças:
"Será que Lamarck estava totalmente enganado?" (BATTER,
2000).
Um motivo para os cientistas reverem a teoria de Lamarck é que os
evolucionistas levam em consideração a grande importância da cooperação na
manutenção da vida na biosfera.
Inúmeras experiências científicas já mostraram
as relações simbióticas da na-tureza.
Em Darwirís blind spot (RYAN, 2002, p.
16) [O ponto negro de Darwin], o físico inglês Frank Ryan narra uma série de
relações, incluindo a de um camarão amarelo que agarra a comida enquanto seu
parceiro, um peixe-gobi, o protege de seus predadores e o de uma espécie de
caranguejo que carrega uma anêmona rosa sobre sua casca.
"Peixes e polvos
se alimentam de caranguejos, mas os desta espécie têm um sistema de defesa a
mais.
Quando predadores em potencial se aproximam, a anêmona abre seus
tentáculos coloridos e brilhantes, lançando dardos envenenados em sua direção.
Eles rapidamente se afastam e vão procurar alimentos em outro lugar" e a
brava anêmona se beneficia com esta parceria, pois fica com todos os restos dos
alimentos do caranguejo.
Mas o conceito de cooperação na natureza vai muito
além desses exemplos simples.
"Os biólogos estão descobrindo cada vez mais
associações entre animais que evoluíram paralelamente e continuam a coexistir,
desenvolvendo em seu interior microorganismos que são necessários para a sua
saúde e desenvolvimento".
Isso é descrito em um artigo recente da Science,
chamado "Sobrevivemos com a ajuda de nossos (pequenos) amigos" (RUBY et al., 2004).
O estudo desses
relacionamentos é um ramo da ciência que hoje está se expandindo rapidamente,
chamado "Biologia de sistemas".
O mais engraçado é que nas últimas
décadas aprendemos a combater os microorganismos usando os mais diferentes
produtos químicos, de sabão antibacteriano a antibióticos.
Mas essa prática
simplista ignora o fato de que diversas bactérias são essenciais para a nossa
saúde.
Um exemplo clássico de como os seres humanos se beneficiam dos
microorganismos é o das bactérias presentes em nosso sistema digestivo,
essenciais para a nossa sobrevivência.
Agindo em nosso estômago e trato
intestinal, elas ajudam a digerir os alimentos e permitem a absorção das
vitaminas que mantêm nossa saúde.
Esta cooperação entre micróbios e humanos é o
motivo pelo qual o uso desenfreado de antibióticos pode comprometer a
sobrevivência de nossa espécie.
Esses medicamentos eliminam microorganismos
nocivos ao nosso organismo, mas também matam indiscriminadamente aqueles que
são essenciais para a nossa saúde.
Estudos recentes da ciência do genoma
revelam mais um tipo de mecanismo de cooperação entre as espécies.
Alguns
organismos parecem integrar suas comunidades celulares partilhando seus genes.
Antes se pensava que os genes eram transmitidos exclusivamente à prole de cada
espécie e por meio da reprodução.
Agora os cientistas estão descobrindo que os
genes podem ser compartilhados não apenas entre os membros da mesma espécie,
mas também entre outras.
Esse processo de transferência genética acelera a
evolução, pois os novos organismos podem adquirir experiências "já
aprendidas" pelos outros (NITZ et al, 2004; PENNISI , 2004; BOUCHER et al,
2003; DUTTA e PAN , 2002; GOGARTEN , 2003).
Com essa troca de genes, os
organismos não podem mais ser vistos como entidades separadas.
Não existe mais
a suposta divisão entre as espécies.
Daniel Drenn, gerente do departamento de
energia do projeto Genoma, declarou à Science em 2001 (294:1634):
"... não
temos mais como simplesmente qualificar espécies" (PENNISI , 2001).
Mas
essa troca de informações genéticas não ocorre por acidente.
Trata-se de um
método que a natureza utiliza para aumentar as chances de sobrevivência da biosfera.
Como já mencionei, os genes são os arquivos de memória das experiências
aprendidas pelos organismos.
Essa nova descoberta de que há troca de genes
entre as espécies mostra que as experiências podem ser compartilhadas por todos
os indivíduos que compõem a grande comunidade da vida.
Obviamente, o
conhecimento desse mecanismo de transferência torna a engenharia genética ainda
mais perigosa.
Por exemplo: experiências simples com genes de tomates podem ir
muito além daquilo que se imaginava e acabar alterando toda a biosfera de
maneira irreversível.
Um estudo recente mostra que, quando humanos ingerem
alimentos geneticamente modificados, os genes criados artificialmente se
misturam e alteram as características das bactérias benéficas do intestino
(HERITAGE , 2004; NETHERWOOD et al, 2004).
E a transferência de genes entre
vegetais geneticamente modificados e espécies nativas deu origem a espécies e sementes altamente resistentes mas de
potencial ainda não conhecido (MILIUS, 2003; HAYGOOD et al,
2003; DESPLANQUE et al, 2002; SPENCER E SNOW, 2001).
Os engenheiros geneticistas jamais levaram em
consideração os possíveis resultados de suas experiências ao introduzir
organismos geneticamente modificados no meio ambiente.
Agora estamos começando
a sentir os efeitos dessa omissão à medida que esses genes se espalham,
causando alterações em outros organismos do meio ambiente (WATRUD et al, 2004).
Segundo os evolucionistas genéticos, se não aprendermos as lições da natureza,
que nos ensinam a importância da cooperação entre as diferentes espécies,
podemos por em risco o destino da raça humana.
Precisamos avançar além das
teorias de Darwin, que enfatizam apenas a importância dos indivíduos e entender
a importância da comunidade.
O cientista inglês Timothy Lenton apresentou
evidências de que a evolução depende mais da interação entre diversas espécies
do que a interação do indivíduo somente com a sua própria espécie.
Só
sobrevivem os grupos que melhor se adaptam ao ambiente, não apenas seus
indivíduos.
Em um artigo publicado pela Nature em 1998, Lenton declara que
devemos concentrar nossa atenção nos indivíduos e em seu papel na evolução:
"... temos de considerar a totalidade dos organismos e seu ambiente físico
para entender quais traços persistem e são dominantes" (LENTON , 1998).
Lenton
concorda com a hipótese de Gaia, de James Lovelock, segundo a qual a Terra e
todas as suas espécies constituem um único organismo vivo e interativo.
Todos
os que defendem essa ideia concordam que, ao afetarmos o equilíbrio desse
super-organismo, a que Lovelock chama de Gaia, seja pela destruição das
florestas, da camada de ozônio seja pela alteração genética dos organismos
vivos, podemos ameaçar sua sobrevivência e, consequentemente, a nossa.
Estudos
recentes do Conselho Britânico de Pesquisas do Meio Ambiente [Britairís Natural
Environment Research Council] confirmam essa possibilidade (THOMAS et al, 2004;
STEVENS et al, 2004).
Embora já tenha havido cinco extinções em massa na
história de nosso planeta, todas parecem ter sido causadas por eventos extraterrestres,
como um cometa que se chocou contra ele.
Um dos novos estudos conclui que o
"mundo natural está passando pela sexta extinção" (LOVELL , 2004).
Mas
desta vez o motivo não vem de fora.
Segundo Jeremy Thomas, um dos autores desse
estudo, "esta extinção está sendo causada por um organismo animal: o
homem".
Seguindo o Caminho das Células
Lecionando na escola de medicina percebi que os alunos deste
tipo de curso conseguem ser mais competitivos e sarcásticos que os de direito.
Seguem literalmente a teoria de Darwin em sua luta para ser os
"melhores" formandos após quatro anos de sangrenta luta na faculdade.
Essa busca desesperada pelas melhores notas e por uma carreira brilhante, mesmo
que para isso seja necessário derrubar ou humilhar os colegas, é a expressão
literal do modelo darwiniano, mas para mim sempre pareceu o oposto do maior
objetivo da medicina, que é a paixão pela cura.
Meus estereótipos, porém, sobre
os alunos de medicina caíram por terra durante o período em que vivi naquela
ilha.
Após minha apresentação do curso, em que os chamei à luta, deixaram de se
comportar como alunos convencionais de medicina.
Trocaram a competitividade
agressiva pela união de esforços e se transformaram em uma equipe disposta a
sobreviver bravamente àquele semestre.
Os mais capazes ajudavam os mais fracos
e, como consequência, todos se fortaleceram. Era uma harmonia surpreendente e
bela de se observar.
A recompensa final foi um final digno de Hollywood.
Apliquei exatamente o mesmo teste final que usava na Universidade de Wisconsin
e o resultado não mostrou diferença alguma entre esses alunos
"rejeitados" e seus colegas "elitistas" dos Estados Unidos.
Muitos chegaram a entrar em contato comigo algum tempo depois para me contar
que quando voltaram para casa e começaram a trabalhar com os alunos que haviam
cursado universidades norte-americanas descobriram que tinham até mais
conhecimentos e domínio dos princípios que regem a vida das células e dos
organismos do que eles.
Claro, fiquei extasiado ao ver que meus alunos haviam
realizado um verdadeiro milagre acadêmico.
Mas levei alguns anos para perceber
como eles conseguiram.
Na época, achei que o formato do curso é que havia
ajudado.
Ainda acredito que comparar a biologia das células à biologia humana é
a melhor maneira de apresentar o conteúdo.
Mas hoje, que me considero ainda
mais maluco, no melhor estilo doutor Dolittle, vejo que boa parte do sucesso de
meus alunos ocorreu porque eles modificaram sua atitude e passaram a agir de
maneira diferente da de seus colegas nos Estados Unidos.
Em vez de se comparar
aos estudantes de medicina de lá resolveram adotar o princípio das células, que
se unem para viver melhor e evoluir.
Jamais disse a eles que adotassem esse
comportamento, até porque eu mesmo ainda seguia o estilo e muitos dos dogmas da
ciência tradicional.
Mas fico feliz ao perceber que eles seguiram
intuitivamente nessa direção assistindo a minhas aulas sobre a habilidade das
células de se unir de maneira cooperativa para formar organismos mais complexos
e altamente eficazes.
Outro motivo para o sucesso deles que hoje vejo mais
claramente é o fato de eu não ter enaltecido apenas as células durante o curso,
mas os alunos também.
Sentiram-se motivados ao ouvir que tinham tanta
capacidade quanto qualquer estudante de medicina que estivesse fazendo o curso
nos Estados Unidos.
Vou mostrar nos próximos capítulos que muitos de nós
vivemos de maneira limitada não por falta de alternativas, mas por acreditar
que elas não existem.
Bem, hoje posso afirmar que já enxergo algumas delas.
Basta dizer que, após quatro meses vivendo no paraíso e lecionando de uma
maneira que me permitiu ter uma noção ainda mais ampla da vida das células e
das lições que elas podem nos ensinar, comecei a deixar de lado a poeira de derrotismo da genética, da programação paterna e dos
conceitos darwinistas de que somente os melhores sobrevivem, para abraçar
definitivamente a nova biologia.
FONTE:
LIPTON, Bruce H. A biologia da
crença. Capítulo I .São Paulo: Butterfly, 2007.Ciência e espiritualidade na
mesma sintonia: o poder da consciência sobre a matéria e os milagres Tradução
Yma Vick , p. 16-29.
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