D. Pedro II
Humberto de Campos
Enquanto os vivos se reuniam em
torno do monumento que o Brasil erigiu ao Patriarca da Independência, no Rio de
Janeiro, os grandes "mortos" da Pátria igualmente se colocavam entre
os encarnados, aliando-se ao povo carioca nas suas comovedoras lembranças.
Também acorri ao local da festa
votiva dos Brasileiros, acompanhado do meu amigo José Porfírio de Miranda,
antigo milionário do Pará, que a borracha elevara às culminâncias da fortuna,
conduzindo-o em seguida, aos declives da miséria, nos seus caprichosos
movimentos.
Os vivos e mortos do Brasil se
reuniam na mesma vibração afetiva das recordações suaves, enviando ao nobre
organizador da vida política da nacionalidade um pensamento de amizade e de
veneração.
Antigo companheiro nosso, também
no plano invisível, em plena via pública acercou-se de mim, exclamando:
- Chegas um pouco tarde.
José Bonifácio já não está presente;
mas, poderás ainda conseguir uma proveitosa entrevista para os teus leitores.
Sabes quem saiu daqui neste
momento?
- Quem?
Pergunto eu, na minha fome de notícias.
Pergunto eu, na minha fome de notícias.
- O Imperador.
- D. Pedro II?
- Ele mesmo.
Após lembrar a
grande figura do Patriarca, dirigiu-se com alguns amigos para Petrópolis, a
reavivar velhas lembranças...
Em meu íntimo, havia um alvoroço
de emoções. Lembrei-me de que, em toda a minha existência de jornalista no
mundo, só enxergara um monarca dentro dos meus olhos: o rei Alberto I, dos
Belgas, quando, no Clube dos Diários, a elite dos intelectuais do país lhe
oferecera a homenagem de uma comovida admiração.
E ponderei se haveria mérito em
consultar o pensamento de um rei, no outro mundo, onde todas as majestades desaparecem.
Recordei a figura do grande imperador que Victor Hugo considerava o monarca
republicano.
Com os olhos da imaginação, vi-o,
de novo, na intimidade dos Paços de São Cristóvão: o perfil heráldico, onde um
sorriso de bondade espalhava o perfume da tolerância; as barbas compridas e
brancas, como as dos santos das oleografias católicas; o olhar cheio de
generosidade e de brandura, irradiando as mais doces promessas.
Um vivo, em havendo de ir a
Petrópolis, é obrigado ao trajeto penoso dos ônibus, embora as perspectivas maravilhosas
do mais belo trecho de todas as estradas do Brasil; os desencarnados, porém,
não necessitam de semelhantes sacrifícios.
Num abrir e fechar de olhos, eu e o
meu amigo nos encontrávamos na encantadora cidade das hortências onde os
milionários do Rio de Janeiro podem descansar nas mais variadas épocas do ano.
Não fomos encontrar o Imperador
nos antigos edifícios em que estabelecera a residência patriarcal de sua
família; mas, justamente num recanto de jardim, contemplando as deliciosas
paisagens da Serra da Estrela e apreciando o sabor das recordações amigas e
doces.
Acerquei-me da sua
individualidade, com um misto de curiosidade e de profundo respeito, procurando
improficuamente identificar os dois companheiros que o rodeavam.
- Majestade!
- Tentei chamar-lhe a atenção com
a minha palavra humilde e obscura.
- Aproximem-se meus amigos! -
respondeu-me com benevolência e carinho.
-Aqui não existe nenhuma
expressão de majestade.
Cá estão, fraternalmente comigo,
o Afonso1 e o Luiz2, como três irmãos, sentindo eu muito prazer na companhia de
ambos. Se o mundo nos irmana sobre a Terra, a morte nos confraterniza no espaço
infinito, sob as vistas magnânimas do Senhor.
E, fazendo uma pausa, como quem
reconhece que há tempo de falar e tempo de ouvir, conforme nos aconselha a
sabedoria da Bíblia, exclama o Imperador com bondade:
- A que devo o obséquio da sua
interpelação?
-
Majestade!
-Respondi, confundido com a sua
delicadeza - desejara colher a sua opinião
com respeito ao Brasil e aos Brasileiros.
Estamos no limiar do cinqüentenário de República e seria interessante ouvir o
vosso conselho paternal para os vivos de boa vontade.
Que pensais destes
quarenta e tantos anos de novo regime?
- Minha palavra
- Retrucou D. Pedro - não pode
ter a importância que a sua generosidade lhe atribui.
Que poderia dizer do Brasil,
senão que continuo a amá-lo com a mesma dedicação de todos os dias?
Do plano invisível, para o mundo,
prosseguimos no mesmo labor de construção da nacionalidade.
As convenções políticas dos
homens não atingem os espíritos desencarnados.
O exílio termina sempre na
sepultura, porque a única realidade é o amor, e o amor, eliminando todas as
fronteiras, nos ligou para sempre ao torrão brasileiro.
Não tenho o direito de criticar a
República mesmo porque todos os fenômenos políticos e sociais do nosso país
tiveram os seus pródomos no mundo espiritual, considerando-se a missão do
Brasil dentro do Evangelho.
Apenas quero dizer que não só os
republicanos, mas também nós os da monarquia, estávamos redondamente enganados.
O erro da nossa visão, quando na Terra, foi supor no Brasil o mesmo espírito anglo-saxão
que a Inglaterra legara aos Norte-americanos.
Eu também fui apaixonado pelo
liberalismo, mas a verdade é que, em nossa terra, prevaleciam outros fatores
mesológicos e, até agora, não temos sabido conciliar os interesses da nação com
esses imperativos.
A ausência de tradição nos
elementos de nossa origem como povo estabeleceu uma descentralização de
interesses, prejudicial ao bem coletivo do país.
Para a formação nacional, não
vieram da metrópole os espíritos mais cultos.
Pesando, de um lado, os
africanos, revoltados com o cativeiro, e, de outro, os índios, revoltados com a
invasão do estrangeiro na terra que era propriedade deles, a balança da evolução
geral ficou seriamente comprometida. Sentimentos excessivos de liberdade não
nos permitiram um refinamento de educação política.
Todos querem mandar e ninguém se sente na
obrigação de obedecer.
Quando no Império, possuíamos a
autoridade centralizadora da Coroa, prevalecendo sobre as ambições dos grupos
partidários que povoavam os nossos oito milhões de quilômetros quadrados; mas,
quando os republicanos sentiram de perto o peso das responsabilidades que
tomaram à sua conta, os espíritos mais educados reconheceram o desacerto das nossas
concepções administrativas.
Enquanto as nações da Europa e os
Estados Unidos podiam empregar livremente em nosso país os seus capitais, a
título de empréstimos vultosos que desbaratavam compulsoriamente a nossa
economia, o Brasil podia descansar na monocultura, fazer a política dos
partidos e adiar a solução dos seus problemas para o dia seguinte, dentro de um
regime para o qual não se achava preparado em 1889.
Mas, quando se manifestou a crise
mundial de 1929, todas as instituições políticas sofreram as mais amplas
renovações, dentro dos movimentos revolucionários de 1930.
Os capitais
estrangeiros não puderam mais canalizar suas disponibilidades para a nossa
terra, controlados pelos governos autárquicos dos tempos que correm, e o
Brasil, acordou para a sua própria realidade.
Aliás, nós, os desencarnados, há
muito tempo procuramos auxiliar os vivos na sua tarefa.
- Quer dizer que também tendes
inspirado os labores dos estadistas brasileiros?
- Sim, de modo indireto, pois não
podemos interferir na liberdade deles.
Há alguns anos, procurei auxiliar
Alberto Torres nas suas elucubrações de ordem social e política.
Em geral, nós os desencarnados, buscamos
influenciar, de preferência, os organismos mais sensíveis à nossa ação e Torres
era o instrumento de nossas verdades para a administração.
A realidade, porém,
é que ele falou como Jeremias.
Somente a gravidade da situação
conseguiu despertar o espírito nacional para novas realizações.
- Majestade, as vossas palavras
me dão a entender que aprovais o novo estado de coisas do Brasil.
Aplaudistes, então, a queda da
denominada república velha, sob as vibrações revolucionárias de 1930?
- Com as minhas palavras - disse
ele bondosamente - não desejo exaltar a vaidade de quem quer que seja, nem
deprimir o esforço de ninguém.
Não posso aplaudir nenhum
movimento de destruição, pois entendo que, sobre a revolução, deve pairar o
sentimento nobre da evolução geral de todos, dentro da maior concórdia
espiritual.
Considere que, examinando a minha
consciência, não me lembro de haver fortalecido nenhum sentimento de rebeldia
nos meus tempos de governo; entretanto, muito sofri, verificando que eu poderia
ter suavizado a luta entre os nossos estadistas e os políticos da América
espanhola.
Outra forma de ação poderíamos
ter empregado no caso de Rosas e de Oribe e mesmo em face do próprio Solano
Lopes3, cuja inconsciência nos negócios do povo ficou evidentemente patenteada.
E note-se que o problema se constituía de graves questões internacionais.
O nosso mal foi sempre o
desconhecimento da realidade brasileira.
Os nossos períodos históricos têm
sofrido largamente os reflexos da vida e da cultura européias.
Nos tempos do Império, procurei
saturar-me dos princípios democráticos da política francesa, tentando
aplicá-los, amplamente, ao nosso meio, longe das nossas realidades práticas.
Os republicanos, como Benjamin
Constante, Deodoro, etc., deram-se a estudar a "República Americana",
de Bryce, distantes dos nossos problemas essenciais.
Quando regressei das lutas
terrestres, procurei imediatamente colaborar na consolidação do novo regime,
afim de que a 3 Alusão às lutas e guerra em que se envolveu o Brasil com as
Repúblicas do Uruguai, Argentina e do Paraguai.
- Minha palavra - Retrucou D.
Pedro - não pode ter a importância que a sua generosidade lhe atribui.
Que poderia dizer do Brasil,
senão que continuo a amá-lo com a mesma dedicação de todos os dias?
Do plano invisível, para o mundo,
prosseguimos no mesmo labor de construção da nacionalidade.
As convenções políticas dos
homens não atingem os espíritos desencarnados.
O exílio termina sempre na
sepultura, porque a única realidade é o amor, e o amor, eliminando todas as
fronteiras, nos ligou para sempre ao torrão brasileiro.
Não tenho o direito de criticar a
República mesmo porque todos os fenômenos políticos e sociais do nosso país
tiveram os seus pródomos no mundo espiritual, considerando-se a missão do
Brasil dentro do Evangelho.
Apenas quero dizer que não só os
republicanos, mas também nós os da monarquia, estávamos redondamente enganados.
O erro da nossa visão, quando na
Terra, foi supor no Brasil o mesmo espírito anglo-saxão que a Inglaterra legara
aos Norte-americanos.
Eu também fui apaixonado pelo
liberalismo, mas a verdade é que, em nossa terra, prevaleciam outros fatores
mesológicos e, até agora, não temos sabido conciliar os interesses da nação com
esses imperativos.
A ausência de tradição nos
elementos de nossa origem como povo estabeleceu uma descentralização de interesses, prejudicial ao bem
coletivo do país.
Para a formação nacional, não vieram da metrópole os espíritos
mais cultos.
Pesando, de um lado, os
africanos, revoltados com o cativeiro, e, de outro, os índios revoltados com a
invasão do estrangeiro na terra que era propriedade deles, a balança da
evolução geral ficou seriamente comprometida.
Sentimentos excessivos de
liberdade não nos permitiram um refinamento de educação política.
Todos querem mandar e ninguém se
sente na obrigação de obedecer.
Quando no Império, possuíamos a
autoridade centralizadora da Coroa, prevalecendo sobre as ambições dos grupos
partidários que povoavam os nossos oito milhões de quilômetros quadrados; mas,
quando os republicanos sentiram de perto o peso das responsabilidades que
tomaram à sua conta, os espíritos mais educados reconheceram o desacerto das nossas
concepções administrativas.
Enquanto as nações da Europa e os
Estados Unidos podiam empregar livremente em nosso país os seus capitais, a
título de empréstimos vultosos que desbaratavam compulsoriamente a nossa
economia, o Brasil podia descansar na monocultura, fazer a política dos
partidos e adiar a solução dos seus problemas para o dia seguinte, dentro de um
regime para o qual não se achava preparado em 1889.
Mas, quando se manifestou a crise
mundial de 1929, todas as instituições políticas sofreram as mais amplas
renovações, dentro dos movimentos revolucionários de 1930.
Os capitais
estrangeiros não puderam mais canalizar suas disponibilidades para a nossa
terra, controlados pelos governos autárquicos dos tempos que correm, e o
Brasil, acordou para a sua própria realidade.
Aliás, nós, os desencarnados, há
muito tempo procuramos auxiliar os vivos
na sua tarefa.
- Quer dizer que também tendes
inspirado os labores dos estadistas brasileiros?
-
Sim, de modo indireto, pois não podemos interferir na liberdade deles.
Há alguns anos, procurei auxiliar
Alberto Torres nas suas elucubrações de ordem social e política.
Em geral, nós
os desencarnados, buscamos influenciar, de preferência, os organismos mais
sensíveis à nossa ação e Torres era o instrumento de nossas verdades para a
administração.
A realidade, porém, é que ele falou como Jeremias.
Somente a gravidade da situação
conseguiu despertar o espírito nacional para novas realizações.
- Majestade, as vossas palavras me dão a
entender que aprovais o novo estado de coisas do Brasil.
Aplaudistes, então, a queda da
denominada república velha, sob as vibrações revolucionárias de 1930?
- Com as minhas palavras - disse
ele bondosamente - não desejo exaltar a vaidade de quem quer que seja, nem
deprimir o esforço de ninguém.
Não posso aplaudir nenhum movimento de destruição, pois entendo que, sobre a revolução, deve pairar o sentimento nobre da evolução geral de todos, dentro da maior concórdia espiritual.
Não posso aplaudir nenhum movimento de destruição, pois entendo que, sobre a revolução, deve pairar o sentimento nobre da evolução geral de todos, dentro da maior concórdia espiritual.
Considere que, examinando a minha
consciência, não me lembro de haver fortalecido nenhum sentimento de rebeldia
nos meus tempos de governo; entretanto, muito sofri, verificando que eu poderia
ter suavizado a luta entre os nossos estadistas e os políticos da América
espanhola.
Outra forma de ação poderíamos ter empregado no caso de Rosas e de
Oribe e mesmo em face do próprio Solano Lopes3, cuja inconsciência nos negócios
do povo ficou evidentemente patenteada.
E note-se que o problema se constituía
de graves questões internacionais.
O nosso mal foi sempre o
desconhecimento da realidade brasileira.
Os nossos períodos históricos têm
sofrido largamente os reflexos da vida e da cultura européias.
Nos tempos do
Império, procurei saturar-me dos princípios democráticos da política francesa,
tentando aplicá-los, amplamente, ao nosso meio, longe das nossas realidades
práticas.
Os republicanos, como Benjamin Constante, Deodoro, etc., deram-se a
estudar a "República Americana", de Bryce, distantes dos nossos
problemas essenciais.
Quando regressei das lutas terrestres,
procurei imediatamente colaborar na consolidação do novo regime, afim de que a divisão
e os desvarios de muitos dos seus adeptos não terminassem no puro e simples
desmembramento do país.
Graças a Deus, conseguimos
conduzir Prudente de Morais ao poder constitucional, para acabarmos
reconhecendo agora as nossas realidades mais fortes.
Devo, todavia, fazer-lhe sentir
que não me reconheço com o direito de opinar sobre os trabalhos dos homens
públicos do país.
Cabe-me, sim, rogar a Deus que os
inspire, no cumprimento de seus austeros deveres, diante da pátria e do mundo.
O grande caminho da atualidade é a organização da nossa Economia em matéria de
política, e o desenvolvimento da Educação, no que concerne ao avanço
sociológico dos tempos que passam.
Os demais elementos de nossas
expressões evolutivas dependem de outros fatores de ordem espiritual, longe de
todas as expressões transitórias da política dos homens.
A essa altura notei que a minha
curiosidade jornalística começava a magoar a venerável entidade e mudei
repentinamente de assunto.
- Majestade, que dizeis da grande
figura hoje lembrada?
- O vulto de José Bonifácio foi
sempre objeto de meu respeito e de minha amizade.
E olhe que foi ele o mais sensato
organizador da nacionalidade brasileira, cujo progresso acompanha,
carinhosamente, com a sua lealdade sincera.
Hoje, que se comemora o
centenário da sua desencarnação, devemos relembrar o seu regresso de novo ao
Brasil, em meados do século passado, tendo sido uma das mais elevadas
expressões de cultura, na Constituinte de 1891.
Dispunha-me a obter novos
esclarecimentos; mas, o Imperador, acompanhado de amigos, retirava- se quase
que abruptamente da nossa companhia, correspondendo fraternalmente a outros
apelos sentimentais.
Palavras amigas de adeus e votos
de ventura no plano imortal e eu e o meu amigo José Porfírio lá ficávamos com a
suave impressão da sua palavra sábia e benevolente.
Daí a momentos, o meu companheiro
quebrava o silêncio de minha meditação:
- Humberto, os monarquistas
tinham razão!...
Este velho é um poço de verdade e de
experiência da vida!
Você deve registrar esta
entrevista, oferecendo aos vivos estas palavras quentes de conhecimento e de sabedoria!...
E aqui estou escrevendo para os
meus ex-companheiros pelo estômago e pelo sofrimento.
Acreditarão no humilde cronista
desencarnado?
Não guardo dúvidas nesse sentido.
Penso que obteria mais amplos resultados, se fosse ao Cemitério do Caju e
gritasse a palavra do Imperador, para dentro de cada túmulo.
***
1Afonso Celso de Assis
Figueiredo, Visconde de Ouro Prêto. Foi presidente do último gabinete
ministerial que teve a monarquia.
2Luiz Felipe Gastão de Orleans,
Conde d'Eu. Foi genro de D. Pedro II, por ter casado com a princeza Isabel.
3Alusão às lutas e guerra em que
se envolveu o Brasil com as Repúblicas do Uruguai, Argentina e do Paraguai.
***
XAVIER, Francisco Cândido pelo Espírito Humberto de Campos. Novas Mensagens, p. 4-6.
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